Seja no desporto, nas artes, na política ou em praticamente tudo na vida, há ocasiões em que parece que a Lei de Murphy é aplicada pela realidade a contrario sensu, isto é, em que tudo o que pode correr bem, corre mesmo bem. Na instância da Casa Capitão, os Destroyer (bem regressados sejam a Lisboa) e Eleanor Friedberger mostraram que há limites que são mesmo para serem ultrapassados, porque vai mesmo tudo correr bem.
De uma sala no Cais do Sodré passou-se para um complexo no Beato que ainda cheira a novo. Depois de ser uma casa emprestada do MusicBox durante os tempos de pandemia, é aqui retomado o espírito da casa velha. E de que maneira, com uma noite de luxo envolvendo Eleanor Friedberger, cantautora que dá cartas a solo depois de ter sido metade dos Fiery Furnaces e, claro, Destroyer, nome fundamental para quem gosta de arranjos de sopros e letras do melhor que se fez neste século mercê da pena de Dan Bejar. Noitadas de horário nobre.
Ainda que o seu concerto tenha precedido o de Destroyer, Eleanor Friedberger foi mais do que mera primeira parte de outro nome. Apresentou-se a solo e só precisou de um sintetizador e de uma guitarra acústica para demonstrar que a simplicidade pode ser uma força motriz.
Despojada mas irresistível na mesma, In Between Stars deu o mote para o exame à capacidade de Friedberger de despir as canções da roupagem de estúdio para uma transposição capaz para o palco. Bastaram-lhe um sintetizador e a sua voz (a assumir o destaque) para que as dúvidas se desvanecessem: a grandeza continua lá toda.
Pegando em seguida na guitarra acústica, presenteou o público com uma grande e sentida versão de My Mistakes. Canção do disco de estreia a solo, Last Summer (2011), instrumento para se soltar das amarras de Fiery Furnaces, banda desaparecida naquele ano (e entretanto regressada) que compartilha(va) com o irmão, Matthew, já na altura era um marco retrospectivo de quem se aproximava da década de carreira e agora é um monumento reinterpretado com toda a crueza. A franqueza da voz e dos versos são um porto seguro emocional para todos aqueles que são assolados pela dúvida, um tanto ou quanto como This Year, hino dos Mountain Goats. Música para sobreviventes.
Após os versos cinematográficos de I’ll Never Be Happy Again, Friedberger recua aos seus tempos de Fiery Furnaces e dedica uma óptima My Egyptian Grammar “a toda a gente de Chicago” (e indirectamente a Vrindavan, dado tratar-se de uma canção de Widow City). Como remate da sua metade da noite, uma belíssima Stare at the Sun comprovou que a simplicidade fica mutíssimo bem a Eleanor Friedberger e seu legado artístico.
Não púnhamos a vista em cima de Dan Bejar e companhia desde há uns meses no Primavera Sound Porto, no qual, por via das inefáveis sobreposições de horário, tivemos de deixar o seu concerto após uns dois terços deste. Não apenas desde então mas sobretudo como sempre, essa lenda viva continua com a sua sprezzatura única, uma elegância artística travestida de displicência que permanece sem rival.
Com Dan’s Boogie (um dos álbuns do ano, pois então) para promover, a abertura da outra metade da noite foi épica, precisamente com The Same Thing as Nothing at All. Soando a uma junção mágica entre Leonard Cohen e os Flaming Lips (ou como um poderio post-rock que quem dera a muitas bandas do género), Bejar e uma banda cujo pico de forma dura há anos desenrolam uma trama de desilusão e de reflexão, com versos do melhor de que aquele já se lembrou de dar ao papel e ao éter: “pride comes before the fall, to have loved and lost is the samе thing as nothing at all”.
Clássico mais ou menos recente da banda, Tinseltown Swimming in Blood é uma viagem à aludida elegância enganosamente displicente. Os arranjos de sintetizador e de guitarra são de gente que leva aquilo que faz a sério, flutuando os versos “I was a dreamer, watch me leave” pela sala quase como uma oração da autoria de um pregador da ironia, a que se junta uma banda cujos acordes e ritmos elevam a devoção de uma congregação de fiéis dançantes. O calvário aqui é o de se saber que este concerto irá eventualmente acabar.
As interpretações do material oscilam entre o fiel ao registo de estúdio e ao extremamente prazeroso desvio para onde se lhes der na veneta. Prova disto foi o dueto de Bejar e Friedberger (que aqui substituiu Simone Schmidt) em Bologna; malha do mais melódico a que aquele nos habituou, deixou-se respirar sonicamente como um vinho exigente, saboreando-se o título da canção no seu término como se fosse um suspiro: “oh, Bologna”.
Mais do que reduzir Destroyer e a obra de Dan Bejar a “rock alternativo”, aqui estamos perante uma pop elegante, herdeira dos 10 cc, de Kate Bush e da City Pop japonesa. Junte-se-lhe o peso sónico de duas guitarras, de uma bateria que bota para quebrar e uns arranjos de sopros que são ouro, platina e diamante (enorme JP Carter) e temos uma banda ímpar, encabeçada por um maioral que anda a surpreender-nos desde que era membro dos The New Pornographers e em cujo funil artístico cabe toda a gente, desde Lou Reed até Jim Carroll.
Bejar, enigmático e circunspecto, fita-nos fixamente como um grande jogador prestes a lançar-nos um ás (ou dezasseis, atenta a set list) que nos vai destruir (piada intencional) o plano de jogo e desgraçar a vida. Poeta ora certeiro, ora abstracto, usa a voz inconfundível para edificar, qual Grande Arquitecto, todo um mundo onde cabem personagens e episódios tragicómicos e autênticas análises sarcásticas aos factos da vida.
E, bom, eis Kaputt. Resumidamente, uma das canções do século. Pormenorizadamente uma junção de um conto sobre a hagiografia e o mito do sexo, drogas e rock’n’roll num mundo cultural que está de ressaca de tudo isso e que usa toda a temática para um fantástico sarcasmo. Uns arranjos de teclas e trompete que evocam o psicadelismo de ontem num sonho sónico que nos arranca sorrisos há década e meia, mais coisa, menos coisa. As grandes vedetas morreram antes do seu tempo ou já passadas do prazo e deram lugar a interpretações como as de Destroyer tal como as Sounds e Melody Maker morreram por já não terem nada para dizer e deram lugar a zines como esta.
Uma nota de apreço para toda a banda, que já acompanha Bejar há longos anos. Em teoria, dir-se-ia que uma banda destas não precisa de duas guitarras, mas o que é certo é que David Carswell e Nicolas Bragg complementam-se e alternam entre si entre o ritmo e os solos como se fossem Tom Verlaine e Richard Lloyd. E quem tem uma secção de ritmo como a dos Destroyer tem asas para fazer o material de estúdio voar. E sempre, sempre JP Carter a ser o zénite de transformar o trompete numa máquina do onírico.
Uma magnífica Rubies (que bem substituiu ausências de peso como Times Square) exemplifica este músculo sonoro da banda. Joshua Wells e Brian Betancourt põem Bejar a mexer e lideram uma carga que ainda arrancou uns coros pela sala fora deste “precious Lisbon underground” (salvo seja). Subsistindo dúvidas sobre qual a canção cimeira de Dan’s Boogie, Hydroplaning Off the Edge of the World é séria candidata a tal prémio, considerando ou não os “la-la-la” e a ubiquidade do sofrimento que Bejar proclama na letra. Abruptamente, um genial interlúdio que viu meia banda sentada no chão que nem Budas ou personagens de um Déjeuner Sur l’herbe do Beato, com Bejar e companhia contemplando o noise hipnotizante (e elegante) antes da próxima prelecção.
Como se já não soubéssemos que Kaputt é um dos grandes discos da década passada, Suicide Demo for Kara Walker e sua ginga liderada pela voz de Bejar, pela bateria e pelo trompete de JP Carter deixaram no ar o óbvio: que a coisa não poderia acabar por aqui e que havia necessidade de ir buscar mais qualquer coisa para manda goela abaixo antes do final da noite.
Enfim, o regresso ao palco, desta feita para encenar o Cabaret Bejar de Travel Light. Dan, um piano e o baixo levam-nos de fininho para uma zona manhosa de uma cidade anónima onde chungaria associada só quer ser livre.
Por falar em liberdade, Eleanor Friedberger não se fez rogada e ajudou, em tabelinha vocal com Bejar, a tornar esta interpretação de Sun in the Sky inesquecível (vai ser complicado voltar à original). Se a interligação de vozes foi tudo menos conflituosa, da ternura dos acordes de piano com os arranjos de guitarra nasceu um confronto sónico que definiu a noite como inteiramente memorável e cimentou a opinião deste escriba de que este foi o melhor concerto de Destroyer que já viu pela frente.
Estamos em Novembro mas o calor suave de Junho fica sempre bem. Como a Lei de Murphy a contrario não parou ao longo da noite, eis uma June para comprovar que ainda havia algo para correr fenomenalmente. O substrato dançável/montra do talento inesgotável da banda põe tudo a mexer (tremenda linha de baixo) como uns Roxy Music contemporâneos enquanto Bejar lê as letras dos papéis que vai remexendo pelo chão e faz todas as suas proclamações (a espaços berra-as) como um tribuno da melomania, um líder para todos os devotos de obra feita em fluxo de consciência. Um último apogeu para proclamar o estatuto de concerto magnífico.
Salvo as ausências de monumentos como Chinatown e Times Square do alinhamento, não houve mácula nesta dose dupla de Destroyer e Eleanor Friedberger, fosse nas interpretações ou no som. Duas referências que muito viveram, compuseram e cantaram e que nos mostraram porque é que o são, numa noite em que se respirou liberdade – criativa e de poder ouvir o que nos der na pinha.
Nem o senhor engenheiro Edward A. Murphy alguma vez poderia prever que a sua lei afinal poderia ser interpretada a contrario sensu.

