A eficiência é uma qualidade. Amplamente apreciada em muitos aspectos da vida, também na música popular a eficiência é uma virtude criativa: no punk e no hardcore o fazer muito com pouco e o corte de gorduras são valores a aplaudir. No post-punk também pode ser assim, tomando-se os Cola, banda canadiana imensamente subvalorizada, como exemplo de eficiência criativa e, como se viu no aquário da Galeria Zé dos Bois, de precisão na interpretação.
Nascidos das cinzas dos Ought, belíssima banda que muitas saudades deixou, o grupo de Montreal, composto por Tim Darcy (voz, guitarra), Ben Stidworthy (baixo), e Evan Cartwright (bateria; antigo colaborador de Meghan Remy em U.S. Girls) continua o legado daqueles, que é o de um post-punk sem rodeios e de construção paulatina da própria fórmula. Do passado ainda do tempo das fundações do género ouvimos-lhes Television (a voz de Darcy parece a reencarnação da do saudoso Tom Verlaine), The Fall, Mission of Burma ou The Wake dos seus tempos na Factory. Já na comparação com os actuais confrades de género, os Cola preferem, à semelhança de uns Protomartyr ou Preoccupations (antigos Viet Cong), um caminho escorreito e clássico sem repetições de fórmulas nem grandes barroquismos, não tendo enveredado (até agora) por experimentalismos como uns Squid, Caroline ou Black Country, New Road.
Com dois trabalhos no repertório, Deep in View (2022) e The Gloss (2024), o trio vinha até nós apresentar a sua evolução na continuidade.
Na abertura das hostilidades esteve Tomás Varela, cantautor lisboeta que, após bater palco a solo e com Aerogasmo, está à beira de editar o seu primeiro trabalho, Curriculum Vitae. Apresentando-se na máxima força com banda, o material correspondeu a essa mesma potência. Explorador de um acervo criativo de dois lados do Atlântico, propõe-se acrescentar algo ao cancioneiro independente de guitarras nacional – e não se fez rogado nem na guitarra clássica, nem na eléctrica.
A importância de editoras como a Cafetra ou a Xita reflecte-se na obra de Varela, que vai assumindo a dianteira de um corpo de discípulos daquelas (sobretudo depois daquilo que se ouviu). Aqui no aquário da ZDB ouvimos laivos de Éme e Maria Reis, em composições sem complexos. Mais: a tradição de inserir instrumentos tipicamente portugueses (in casu, a viola braguesa de boca redonda) mantém-se e que bem faz à obra.
Ritmicamente, estamos perante um sentido abraço Atlântico; ora ouvimos Fausto Bordalo Dias ou Variações (em É P’ra Amanhã), ora ouvimos algo que poderia ser da mesma escola de Aquele Abraço, essa malha intemporal de Gilberto Gil. Estendendo-se as composições ao longo de vários anos e reflectindo a evolução artística de Varela, aquilo a que se assiste é a uma maturidade de quem está finalmente pronto para dar o salto. O homem de uma das letras de Varela até pode já ter morrido, mas temos cantador a nascer e a crescer.
Remate com Ela Dança, primeiro single do disco vindouro e óptimo aperitivo, para mais sendo uma expansão da versão de estúdio. A Tomás Varela e companheiros deu-lhes efectivamente na gana e levaram tudo à frente.
No PA, os maiores êxitos de Daryl Hall (o género de artista que as bandas fixes ouvem mas que os preconceituosos da fixeza acham datado e azeiteiro) preparavam a sala para receber os canadianos. Para nós e mesmo depois de alguma batota a ver vídeos de concertos dos Cola, a expectativa era grande: nunca apanhámos os Ought ao vivo, perdemos o trio na sua estreia por cá em 2023 e os seus dois discos continuam a aguçar-nos a curiosidade de vê-los ao vivo.
Logo à primeira malha, Pallor Tricks, o surrealismo cinematográfico da letra mostrou que os Cola são, em correlação com toda a sua aparente simplicidade sonora, uma banda distinta. O mesmo se diga de Reprise, cujos acordes de barra são parte da definição de post-punk contemporâneo com categoria e cuja segunda estrofe da letra é Philip Roth aplicado a opções de vida de hipsters.
Quando se pensa que os limites criativos dos Cola foram atingidos nos dois álbuns, eis que este ano se saíram com Mendicant, single saído em Maio. Continua a trajectória de o grupo ser herdeiro de coisas como The Fall sem ser formulaico, adicionando-lhe arranjos de flauta (em falta ao vivo, mas nada que afecte em demasia) e de interpretação impecável.
Após uma fabulosa Bell Wheel e cumprido meio concerto, algumas palavras de Tim Darcy ao público, nomeadamente uns rasgados elogios à ZDB, à cidade e um pouco de curiosidade linguística: “como é que se diz banter [converseta entre banda e público] em português? E que significado tem aqui?”, recebendo de resposta um “significa dizer merda!”. Converseta encerrada?
Nada disso, que Evan Cartwright tinha como sonho antigo ver fado ao vivo. Com efeito, a maior fatia emocional sónica de Cola não vem dos acordes de Darcy, mas sim da bateria de Cartwright. O crescendo de Bitter Melon até à sua explosão (para os padrões apolíneos da banda) ou os saltos de andamento de So Excited são uma analogia a sobressaltos mentais que esta vida e este mundo nos provocam.
Tempo também houve para uma invasão de palco por parte de um basset hound, que veio espreitar o noise (mesmo na produção de ruído os Cola são uns tipos contidos), conferir o alinhamento, cheirar a cerveja de Darcy e mandar um salto para a plateia, como que a ignorar os chatos dos humanos que teimavam em fazer barulho em horário nobre (para as pessoas, talvez não para os cães).
A espécie de motorik de Degree atinge um ponto alto de ordem e razão que torna esta versão ao vivo superior à de disco (como, de resto, todas as que desfilaram em palco). Secção de ritmo maravilhosamente entrosada e uma guitarra cujos acordes são um apogeu de sobriedade (passe a quase contradição em termos) são um mestrado em ciências de post-punk com dissertação defendida em cerca de três minutos.
Um término de concerto com umas Albatross e Keys Down If You Stay exemplares deixou uma nota belíssima na caderneta da noite. Uma banda que nunca perdeu o rumo em palco, que com pouco diz muito e que, como tal, tem alma e assunto. Curiosidade em ver Cola completamente assassinada com todo o louvor.
Na distopia que por vezes parece tornada realidade, em que tudo ou é uma vibe ou uma psyop, os Cola surgem como uma banda que é comida de conforto sónica. Não obstante o cordão umbilical com os Ought (em particular a voz de Darcy e ainda terem t-shirts daqueles à venda), aqui já se está noutro plano e com outra identidade.
A consistência criativa da banda, aliada à execução disciplinada ao vivo e, como tal, sem mácula, confere-lhes uma merecida aura. Há alguns anos, havia aí certo partido que entre os seus vários slogans eleitorais tinha um que dizia “com toda a confiança”; os Cola são a banda que podemos ouvir e ver com toda a confiança. Resta saber se continuarão a navegar nas mesmas águas sem encalhar no marasmo sonoro, que até agora a eficiência e a precisão fizeram-lhes muitíssimo bem.
Os Cola dizem muito com pouco e nós é que temos tudo a ouvir.