Reza o lugar-comum que não se deve voltar a um lugar onde se foi feliz. E por lugar entenda-se não apenas um dado local, mas também um estado de espírito, voltar a treinar uma equipa desportiva na qual se ganhou ou uma fase criativa. Pois bem, quem congeminou tal coisa nunca ouviu falar dos Cap’n Jazz, banda norte-americana que veio refutar tudo isto e dar um arraial de uma banda só no Primavera Sound Porto.
Depois do fenomenal concerto dos American Football (outra banda “à Primavera, aquelas que são raridades por cá) no ano passado, a visita dos Cap’n Jazz foi uma notícia das melhores que se pode ter nestas lides, mesmo representando uma inversão cronológica na relação entre as duas bandas. A nostalgia assim vale a pena.
Vai um jogo de copos antes de se começar o relatório do gig? Tentem dizer o título completo do único álbum do grupo sem se enganarem e bebam um shot de cada vez que tropeçarem. E qual é o título, mesmo? Burritos, Inspiration Point, Fork Balloon Sports, Cards in the Spokes, Automatic Biographies, Kites, Kung Fu, Trophies, Banana Peels We’ve Slipped On, and Egg Shells We’ve Tippy Toed Over. Se só conseguirem apanhar uma bezana e ainda não estiverem em coma alcoólico, contentem-se com o prémio de consolação de conseguirem dizer o título alternativo do álbum: Shmap’n Shmazz. Ou da antologia da banda, Analphabetapolothology.
O território da banda, sito no chamado Emo do Médio Oeste (Midwest Emo), tem raízes diferentes do congénere da Costa Leste (ou de primeira vaga, se se preferir), aquele dos Dag Nasty, Embrace ou Rites Of Spring. No caso específico dos Cap’n Jazz, para além do tufão emocional (muitas vezes hilariante e sem nexo) das letras, os arpejos na melodia e o ritmo cheio de quebras do post-hardcore definiram a identidade da banda e acabariam por influenciar uma catrefada delas – incluindo as subsequentes dos seus membros ou os contemporâneos Nymb e Don Martin Three.
Fundados em 1989 quando os membros estavam no tempo de vida de ter as hormonas num mosh pit e a cara tipo pizza de salame, os Cap’n Jazz já mostravam uma queda incomum para a fundição de boas influências (para além daquelas supra, junte-se-lhes os Fugazi e os The Nation of Ulysses) numa fornalha sónica mais dada à monumentalidade do grito sincero como veículo de expressão de emoções do que para a chonice que é estereótipo do emo. Logo no seu primeiro EP, Sometimes If You Stand Further Away From Something, It Does Not Seem As Big. Sometimes You Can Stand So Close To Something You Can Not Tell (já tínhamos aqui um padrão/obrigado por nos ocuparem linhas e pouparem-nos trabalho, amigos), todos aqueles elementos já estavam no sítio – a partir daí seria refinar através do incremento da técnica e de uma mistura mais completa no estúdio.
Tal como os American Football, a banda é uma teia de relações familiares, em especial na presente formação. Tim Kinsella (doravante, Kinsella) faz-se aqui acompanhar de uma formação que é praticamente a original (só falta Davey von Bohlen, que em tempos odiava a banda), contando então com os primos Mike (bateria) e Nate Kinsella (guitarra), Victor Villarreal (guitarra) e Sam Zurick (baixo). Tudo gente com Síndrome de Peter Pan? Nada disso, antes gente que soube envelhecer convivendo bem com o passado.
As histórias conflituantes sobre o nome da banda reflectem o grandioso efeito da descoberta na juventude: ora é um trocadilho com os cereais Cap’n Crunch, ora é produto do fascínio que Kinsella e Zurick tinham pelo jazz, metendo Elvin Jones ao barulho e o conceito de um super-herói que transformaria tudo o que fosse chato em jazz. Cabeças que vivem a cem à hora são assim.
Tim Kinsella, vocalista, fundador e maquinista do grupo, é um tipo que anda de esteira para descansar antes de actuar, que a sessão será exigente fisicamente e até o caos precisa de estrutura. E é um tipo generoso, que por várias vezes emprestou a pandeireta ao público, pedindo-a de volta quando fosse necessário, por vezes uma “canção e meia” depois deste comodato.
A prova dos nove sobre se voltar onde se foi feliz vale ou não a pena começou a ser tirada com Basil’s Kite. O empirismo da vida do protagonista e a parte instrumental surgem com uma intensidade decalcada com mestria do estúdio. E a genial trompa de Kinsella ali pelo meio, como que a lembrar o absurdo da vida (os sopros são marca registada da família Kinsella nos seus projectos, está visto) e que o concerto iria ficar nos anais deste Primavera (nem uma curta falha de energia no palco os parou).
Mal refeitos do estoiro da abertura, In The Clear continua a fundamentação, por parte da banda, de que devemos mesmo voltar onde fomos felizes. A mítica voz rouca de Kinsella está aqui à nossa frente e a ser distribuída para todos através do PA. Se se fechar os olhos, ninguém diria que não estamos em 1995 algures numa sala de concertos no Illinois ou num quarto de um jovem adulto nos subúrbios da grande urbe Chicago – para o envolvimento dos anos noventa ser ainda maior, a projecção ao fundo do palco mais parece um screensaver do Windows 95.
E a energia? Kinsella deve ter sido campeão de saltos na cama algures no tempo, que não pára quieto. Nas quebras bruscas de Yes, I Am Talking To You grita, salta e mantém a ânsia de dizer algo, a extroversão disfarçada de introspecção que é, no fundo, a alma de Cap’n Jazz – por oposição à verdadeira introspecção de American Football. Ao ouvirmos e vermos estas bandas, acabamos por testemunhar a evolução como pessoas dos seus membros, quase como um exercício empírico.
Frenéticos como George Costanza num dos seus esquemas, a ortodoxia do hardcore não era e não é com eles. Como não podia faltar num concerto de um sub-género da árvore genealógica do punk, Tim Kinsella vai flutuando plateia fora numa demanda de crowd surf.
No lado sitcom da coisa, Kinsella vai avançando no crowd surf enquanto mantém a parada em Olerud mas, a dada altura, sorri e exclama “larguem lá o raio das câmaras senão eu caio, pá” (mea culpa). Não se afligiu lá grande coisa, que voltou a surfar pela mole humana e a ir às grades emprestar o microfone (e receber de volta a pandeireta).
Já em terra firme, aproveita para agradecer à segurança (“aplausos para a segurança, coisa rara de onde vimos, os EUA ”; nesse mesmo dia, uma política do Minnesota e o seu marido foram mortos a tiro) e faz uma sondagem improvisada, perguntando quantos dos presentes estão nos cinquentas (contas por alto, assim umas vinte pessoas) e dizendo, com toda a franqueza, que já não tem idade para isto (grande mentira, que não seria a primeira).
For Nate’s Brother Whose Name I Never Knew or Can’t Remember, dos Owls (banda de Tim Kinsella depois dos Cap’n Jazz) serviu de interlúdio em que o jangle foi reduzido ad absurdum (mas nem isso parou o pit) e o arraial chegou ao ponto de rebuçado. E aí continuou com Oh Messy Life, malha destruidora de pescoços e de vozes, mas também um monumento de como os cogumelos mágicos podem dar em letras (esta podia ser de um Ginsberg adolescente) que são um pot-pourri sobre calvície e gajos que cheiram mal.
Estando-se num arraial, naturalmente que tem de haver putaria, nem que seja nas letras. Os “boys kissing boys” de Bluegrassish mantiveram a loucura do concerto num nível impossivelmente alto – e atente-se ao facto de a canção em questão ser mais uma vinheta do que uma composição tout court.
A intensidade e a beijoquice (de gajos passou-se para a musa dos oitentas Molly Ringwald: “Hey Ringwald haze”) continuaram altíssimas, que veio aí Little League. Canção demolidora e quiçá a melhor montra dos Cap’n Jazz, incendiou o pit e o berreiro geral até que, como bem se sabe, foi tudo abaixo numa quebra-ponte que tem o melhor troca-línguas do emo (vai mais um jogo de copos?): “thin kids get a skinny neck hex (kitty kitty cat, kitty kitty cat), heads hang heavy, thin kids get a skinny neck hex (kitty kitty cat, kitty kitty cat), heads hang heavy, thin kids get a skinny neck hex (kitty kitty cat, kitty kitty cat), heads hang heavy”. E vai daí para nova ida ao poço do berreiro, naquela que foi uma pedra basilar deste lugar feliz em forma de arraial que é um concerto da banda.
Na festança dos Cap’n Jazz pode não haver sardinhas nem febras (mas há burritos), mas há uma versão bruta da xixa de Take On Me dos a-ha que pinga no pão como a melhor sardinha. Se em 1995 ainda havia aquele desdém imbecil pelos anos oitenta e o público da banda ficava indiferente a esta interpretação do êxito estrondoso de 1984/85 (vide aqui), em 2025 há uma plateia endiabrada e com sentido de humor que acompanha a banda num momento que raiou a catarse. E que foi bem melhor do que as vossas noites de anos oitenta na discoteca. Inchem.
“Chicago é uma utopia cercada pelo Inferno!”, exclamou Kinsella sem pejo. Os ares aqui do burgo fizeram-lhe bem, pelos vistos. E a sua música a nós.
Do nada, um pacote de batatas fritas e uma cervejinha para o guerreiro incansável. Sucede que o concerto ainda estava em andamento, mas como já estava a zona transformada no quarto de um casario nos subúrbios de Chicago, dane-se tudo o resto e consideremo-nos todos convidados para uma ceia.
E nesta patuscada improvisada, Kinsella sai-se com mais uma mesmo à marialva: “somos gajos de cinquenta anos [verdade] sem skills de marketing [talvez] e que não conseguem fazer música de que as pessoas gostem! [mentira descabelada]”. E com isto aterrou um concerto que foi sobretudo um incrível (e, a espaços, enternecedor) arraial – Que Suerte! foi assistir a tudo isto em mera hora e pouco.
Uma banda que é expoente de fixeza (e de conhecimento enciclopédico para mostrar aquela indie cred) cumpriu o que tacitamente prometeu. Sem quaisquer peias, os Cap’n Jazz voltaram a um lugar onde foram felizes e levaram-nos com eles a um dos grandes, grandes concertos desta edição do Primavera Sound Porto (e de sempre) – só podemos mesmo acompanhar o gesto de coração com os dedos que alguém a nosso lado fazia.
Se, porém, não devemos voltar a todos os lugares onde fomos felizes (então a pessoas nem se diga), aos dos Cap’n Jazz valerá sempre a pena voltar, até porque com este concerto acabaram de edificar mais um. Venha o próximo com Joan of Arc ou Owls.
Haja programas de passageiro frequente para onde já fomos verdadeiramente felizes.