Reportagem


Canadian Rifles + Burning Pyre + Otro

Numa casa farta faz-se jejum à mesma.

Rua das Gaivotas 6

02/04/2022


© Mafalda Miranda Jacinto

Antes de mais nada: finalmente regressados às reportagens depois de dois anos de interregno, apre. E nada como regressar gastando umas linhas com gente que ajudou a passar todo este tempo fora das lides, seja com iniciativas online, seja através dos discos que não deixaram de sair por causa do bicho, casos do Colectivo Casa Amarela e de Canadian Rifles e Burning Pyre, respectivamente.

O Colectivo Casa Amarela, que nos primeiros meses de pandemia nos deu festão caseiro (no nosso castelo gótico estávamos fine…) nos seus sets online no Twitch, mal foi possível voltou às iniciativas in loco a partir de 2021, como é o caso do Jejum, sessões de música experimental em parceria com a Rua das Gaivotas 6 – juntou-se a fome com a vontade de (não) comer, portanto. Eis então o Jejum número doze, que contou com os seus primeiros nomes internacionais: Canadian Rifles em tandem com Burning Pyre e ainda com Otro, para comemorar um ano de colaboração e, espera-se, o continuar do desfiar final da pandemia.

Como a noite foi de contradições, inverta-se a ordem dos factores e comecemos por falar da actuação de fecho de noite: a de Otro, produtor espanhol, oriundo de Valência. Por vezes próximo da PC music, por outras da vaporwave (aqui conjugada com o cloud rap, como no óptimo Sur), tem também uma costela da crítica pós-irónica da Internet, como se ouve em The IG Stories.

Um convidado deste calibre reflecte duas evidências sobre o Colectivo Casa Amarela: que não tem curteza de ouvidos nem de vistas e que não falta sentido de humor aos seus elementos para não se levarem demasiado a sério, mas sem deixarem a honestidade artística de lado. Não admira que a coisa tenha sido frutífera, como se verá.

Durante cerca de quarenta minutos, Otro desfilou, como bom cañero valenciano contemporâneo, as suas batidas. Pastiche em forma de beats que podiam ter saído de um western spaghetti (ou western paelha, vá) e uma colagem de samples do que de melhor lhe deu na telha; displicentemente administradas e, porque estamos em plena Idade da Pós-Ironia, de vez em quando lá sacava do telemóvel ou ia dar uma volta (o fumo a dar jeito para a mística da coisa).

Ora, não fosse Otro valenciano e em muitas das suas peças daria para subir as BPM e teríamos umas excelentes malhas para uma neo-Ruta del Bakalao ou para pancadaria gabber. Um pé na última década do século XX e outro no tempo da música desmaterializada e dos NFT. Remate-se o concerto: Otro tanto podia fazer batidas para a saudosa Aaliyah como para o compatriota C. Tangana.

Antes de Otro, Rui Andrade/Canadian Rifles e Christopher Macarthur/Burning Pyre aceitaram o convite dos antigos compinchas (sempre amigos, contudo) de Andrade e vieram a Lisboa apresentar The Snipe & The Clam, um dos melhores álbuns de 2021 e que boa crítica da nossa parte mereceu.

Arranque em tons de vermelho-Fafá de Belém com When Did We Stop Dreaming Of Stars?, primeira colaboração entre os dois projectos, datada de 2019. Já aqui se antevia que a mescla das ideias de ambos daria para as melodias de sintetizador e efeitos provocarem determinados efeitos nas feromonas da ambient – a tal abordagem romântica a que aludem na página de Bandcamp do registo conjunto.

A incursão por The Snipe & The Clam não tardaria, com as melodias de The Snipe em evidência, num crescendo ainda tímido. Nota-se, contudo, um pico de dureza, como que a puxar mais pelo noise do que pela ambient; afinal de contas, também o romantismo tem o seu quê de violência. Seria, de resto, um aspecto da actuação, o de maior peso em relação ao registo em disco.

Macarthur de preto e de gorro assemelha-se a um cirurgião da melodia, ao passo que Andrade é um monge da ambient, debruçado sobre a maquinaria como que a puxar pelas escrituras até dali extrair o Evangelho. Como os animais que intitulam o álbum, é a dualidade que se impõe, até porque os acontecimentos recentes assim o sugerem: entre a guerra e a paz, entre a doença e a saúde, entre a luz do saber e as trevas da ignorância.

A dada altura, Andrade dá uma de Gibby Haines e foge da mesa para puxar pela máquina de fumo. Bota que tem para evocar o ambiente de guerra e suspeição que se vive, retirando vivacidade (e vida, também) ao vermelho-vivo das luzes, como se o fumo fosse um invasor. Macarthur mantém-se plácido, operando a melodia sem precisar de bisturi enquanto Andrade parece um Pensador de Rodin em busca do equilíbrio entre manter as texturas do disco e o som abrasivo que atire a interpretação para o noise.

Percorrer The Snipe & The Clam ao vivo é andar num intimismo onírico onde o ruído ora dilata, ora encolhe e onde a beleza quase febril do sonho (a abordagem dita romântica do duo à ambient) anda em tensão com calafrios cortantes. Ou, porque não dizê-lo: a melodia e o noise distorcem-se e fogem ao sonho, ao ponto de constituírem um pesadelo que atravessa o éter.

Se umas composições valem por si, outras servem de vinhetas ou, melhor dizendo, de intervalos para novo maremoto emocional. O noise é o argumentum baculinum da dupla, um acórdão para quem quiser ouvir – e estava uma sala composta para o efeito.

A carga emocional da obra de Andrade está aqui bem vertida: o Sol a entrar pelas frestas depois de mais uma noite complicada que pede o alívio dos tormentos por que passam os bons, como diria Camões. Não sendo caso único na ambient nacional (ouça-se os projectos de Andrade na sua Eastern Nurseries ou aqueles com Bruno Pereira no Colectivo Casa Amarela e deste com António M. Silva), a navegação pelas emoções transforma os músicos e os ouvintes em timoneiros que vão aguentando as ondas.

Onde toda a tensão da dualidade do disco e do concerto atingem a plenitude é em Sterling Silver Draped Across Their Necks, última do disco e da actuação. Não só a melhor faixa de The Snipe & The Clam, mas também uma das melhores composições de 2021 e uma das peças que define a obra de ambos até aqui, foi claramente a pedra angular do concerto.

Do alto dos seus quase sete minutos é um crescendo que vai enchendo o peito a partir da marca dos dois minutos (Andrade e Macarthur a chegarem ao vermelho no som, o rasgo que foi para além do disco. O que se perdeu em beleza da versão original neste andamento ganhou-se em vigor – e em vibrações no ossos, como se quer no noise show. Tudo isto sem nunca se perder magistralidade sonora.

A partir dos quatro minutos a inflexão para a outra face (da beleza) da música; aquele momento que já descrevemos como algo digno de um confronto Deckard contra Batty num Blade Runner. Diga-se que quase que aqui nasceu um sub-género da ambient, a ambient emocional (®). Acalmia e paz urbi et orbi.

Com isto termina o relato de uma noite prazerosa que marca o começo de regresso que se quer definitivo a uma normalidade que há demasiado tempo se quer. Os contrastes dos dois concertos foram um paralelismo de música experimental com os tempos que vivemos nos últimos dois anos: a escuridão dos que invadem outrem e dos chalupas que negaram a realidade e a luz de quem resiste e de quem acreditou no saber. Certezas em vez de suspeição e beleza no lugar dos horrores.

Beleza esta nascida da dualidade dos contributos da dupla, em que se estabelece que a ambient é o género ideal para exprimi-la ou, no caso de Otro, das multiplicidades dentro da sua obra. Diz a fábula chinesa que no confronto entre a narceja e a amêijoa quem saiu a ganhar foi o pescador. Se por pescador entendermos quem marcou presença no Jejum #12, então para bom entendedor meia palavra basta.

Beleza debruada a ouro e com fé eterna na intimidade.


sobre o autor

José V. Raposo

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