Antes de mais, uma confissão. Conor Oberst provoca-nos uma polarização em relação à sua música: este escriba é fã de Bright Eyes (e de outros projectos seus), mas dispensa a obra daquele a solo (devemos ter assistido a um quarto de hora do seu concerto na edição de 2014 de Coura). Deste modo, a estreia de Bright Eyes em solo nacional revestiu-se de especial interesse, porque nomes destes não passam por cá assim tantas vezes ou, por outras palavras, com a frequência desejável.

De um cantautor de excepção como Luís Severo fez-se, então, uma pequena piscina até ao palco Heineken para tirar as teimas de outro cantautor distinto como Oberst e sua banda. Se Five Dice, All Threes, lançado pela Dead Oceans no ano passado, era o motivo da vinda, o jogo de sorte e azar que é o alinhamento do concerto de uma banda com o historial dos Bright Eyes redundou numa vitória retumbante para quem enchia o segundo maior palco do recinto.

Uma projecção ocupa todo o fundo do palco e diz-nos de que estamos agora num concerto dos Bright Eyes. Obrigado pelo lembrete que, como se verá, é desnecessário, que a banda norte-americana é digníssima e, no panorama do festival, inigualável.

Conor Oberst já muito atravessou num percurso criativo de mais de trinta anos. Da experimentação do início de carreira até à consolidação artística, passando pelo trauma da morte do irmão Matthew e por um hiato dos Bright Eyes que durou vários anos, apresenta-se perante nós como um tipo que não destoaria num concerto das bandas do Paisley Underground no Whiskey a Go Go algures nos anos oitenta. Visto de uma plateia bem composta, bastam segundos de actuação para lhe toparmos as idiossincrasias (à semelhança de Ryan Adams ali mesmo em 2017) – bem patentes durante todo o espectáculo, de resto.

Se para muita banda do cartaz o significado de entrar a rasgar é começar a cem à hora para levantar um pit, para Bright Eyes é interpretar Four Winds, canção a pender para o acústico que não tem pejo em demonstrar que Oberst é um dos melhores letristas deste século: “the Bible’s blind, the Torah’s deaf, the Qu’ran is mute, if you burned them all together, you’d get close to the truth still”.

Indignados com a blasfémia? Com Oberst é da praxe, que entre fazer sua a mescla da folk e da country com o indie e cantar versos que vão do abstracto e surreal até ao soco preciso de palavras vale tudo. A par de Craig Finn e de John Darnielle (entre outros), é um dos grandes letristas do cancioneiro de guitarras norte-americano das últimas décadas.

Em seguida e antes de We Are Nowhere and It’s Now (da magnum opus que é I’m Wide Awake, It’s Morning), duas observações: segundo Oberst, “esta canção é sobre uma mulher portuguesa, mas em Nova Iorque” e tem uma letra demolidora sobre os efeitos de beber para esquecer,  em particular em versos como “if you hate the taste of wine why do you drink it ‘til you’re blind?”. No meio de tanto desespero, o solo de bandolim é um balázio de optimismo capaz de curar os que estão presos à doença.

A banalidade de estúdio de Jejune Stars fica para trás nesta calejada e madura versão. Da emo de segunda em disco para o heartland rock em Algés vai um mundo de distância e cerca de catorze anos de evolução artística e de convicção de que até se pode envelhecer, mas que, à guisa de Paul Westerberg e dos Replacements (influência óbvia), o coração nunca deixará de bater com juventude.

Oberst, quando livre de deveres na guitarra, anda desultório palco fora (com sapateado à mistura) como se carregasse consigo todas as dores do mundo – ou todos os refrães orelhudos, como o de Mariana Trench. Bem prega frei Oberst mesmo com uma voz que não está a 100% (ainda há uns meses teve de cancelar concertos depois de a perder). Nada que seja grande transtorno, porque fá-lo soar ao Bob Dylan de Highway 61 Revisited e daí em diante.

Não apaguemos desta história os outros membros dos Bright Eyes, que Mike Mogis (a espinha dorsal sónica da banda e colaborador fiel de Oberst), MiWi La Lupa e Nate Wolcott (o primeiro e o terceiro são bons filhos à casa regressados) são três one-man bands em sincronia numa magnífica divisão sónica de trabalho. Seja nas texturas melódicas das teclas e do bandolim ou nos arranjos de sopros, a actual composição dos Bright Eyes perfez metade da potência do concerto. 

Por falar em Dylan (e nos The Band), bendita foi a ida a Lifted or The Story Is in the Soil, Keep Your Ear to the Ground através de Method Acting. Aqui numa execução pujantemente eléctrica, conduz-nos à conclusão de que os Bright Eyes e Oberst podem ser descritos com uma só palavra: urgência.

O maior apogeu de um concerto pleno deles deu-se com Road to Joy, obra-prima dentro de uma obra-prima (I’m Wide Awake…). A banda engata o modo “partir tudo” e leva-nos de volta aos desastres dos tempos de George W. Bush (em particular o do Iraque, o primeiro grande erro estratégico e geopolítico do século, só igualado pela invasão da Ucrânia pela Rússia), à modorra do quotidiano de um artista de então e as dúvidas sobre as suas capacidades de almejar o sucesso. Com a progressão melódica de Hino à Alegria de Beethoven (Schiller não foi convocado, que para isso está cá Oberst) e uns arranjos de sopros a ajudar, ficou gravado a ouro um momento triunfal para os anais do festival.

O Conor Oberst dos tempos do hiato da banda andava meio errante e, por vezes, pouco convincente; o de 2025 pede luz (“as coisas estão muito más lá nos Estados Unidos, mas um primo meu disse-me que tenho de acender todas as velas, seja para Gaza, para Tel Aviv, para todo o lado”) para todos os aflitos deste mundo e fá-lo através de One for You, One for Me. O pregador está de regresso, com toda a fúria (nem a mesa de apoio resistiu) de uns passos de dança intercalados com versos que convocam Hitler, Eva Braun, o conceito rastafari de Eu e Eu e as contradições da vida.

Com os últimos acordes e movimentos catárticos desta extraordinária despedida ficou selada a melhor actuação (ex aequo com Nine Inch Nails e ligeiramente à frente de St. Vincent) desta edição do NOS Alive. Um grande concerto para nós, um grande aplauso para vocês, Bright Eyes.

Diz-se que nunca se esquece a primeira vez de muitas coisas na vida. Junte-se-lhes a primeira vez dos Bright Eyes por cá.

Fotos por Hugo Rodrigues
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