Reportagem


Arcade Fire

Deixem os Arcade Fire dançar

Campo Pequeno

23/04/2018


© João Pedro Padinha / @joaopadinha (instagram) // Sony Music Portugal / @sonymusicpt (instagram)

Sejamos sinceros, quando entrámos no Campo Pequeno, na passada segunda-feira, para assistir ao concerto dos Arcade Fire, estávamos confiantes de que seria um grande concerto, porque já nos cruzámos com a banda várias vezes por esses festivais fora e sabemos que lhes é impossível dar um mau espectáculo, ou até mesmo um que seja apenas razoável. A verdade é que, mesmo com expectativas altas, o último álbum da banda, Everything Now, editado no ano passado, carregado de uma pop ofuscante bem distante do indie rock que apaixonou toda uma geração no virar do século com o aclamado Funeral (aquele que será sempre a sua obra prima), deixou muita gente desconfortável e havia uma irritante vozinha interior que nos dizia “ok vai ser um bom concerto, mas provavelmente este não é o melhor momento para ver os Arcade Fire”. Não poderíamos estar mais enganados, o concerto que os Arcade Fire deram no Campo Pequeno foi memorável, arriscamos dizer até, ou melhor que se lixe, garantimos mesmo, o melhor que os canadianos já deram por cá.

Parece inacreditável mas foram precisos 13 anos, desde 2005 quando em Paredes de Coura começou a bonita relação dos Arcade Fire com o público português (festival ao qual regressam este verão), para que a banda viesse pela primeira vez em nome próprio ao nosso país. Não que tenham faltado oportunidades para os ver, pois entretanto conseguiram percorrer praticamente todos os festivais portugueses, mas era imperativo uma sala e um só público para os receber. A prova foram os bilhetes que voaram logo aos primeiros dias do anúncio do concerto ainda a meses de distância, e todos os que marcaram presença na plateia de norte a sul do país tendo de organizar agendas para conseguir estar na capital a um dia de semana.

Este foi seguramente um factor determinante no ambiente único que se viveu no Campo Pequeno, uma sala que consegue acomodar bastante gente, sem perder o aspecto intimista, com uma acústica difícil de manobrar que por vezes levou a melhor aos técnicos de som, e uma sala também inevitavelmente manchada pelo sangue da pesada tradição da tauromaquia, que muitos dos presentes gostariam que num futuro próximo fosse apenas palco para mais noites como esta, uma ideia da qual Win Butler também parece partilhar, quando após a bela “Haïti”, numa interpretação sonhadora de Régine Chassagne capaz de amolecer qualquer pedra, nos diz “I think this is a much better use of space than killing bulls”.

Mas voltemos ao início e à entrada apoteótica da banda ao som do disco de “A Fifth of Beethoven” de Walter Murphy, cruzando a plateia até ao ringue/palco montado a meio da arena, após uma introdução espirituosa em voz off dos pugilistas da noite. Arranque directo com a contagiante “Everything Now” (os ABBA ainda devem estar a pensar como é possível ter-lhes escapado esta), instala-se o habitual frenesim em palco da banda, a bola de espelhos no tecto começa a girar, está oficialmente aberta a pista de dança mais brilhante do ano.

Ainda meio atordoados com tanta energia, quer da banda quer do público, que quer fazer jus a algo que recordamos Win Butler nos ter dito num concerto há uns bons anos atrás, que se não nos falha a memória era qualquer coisa como “dá para vocês ensinarem lá fora o que é ser um grande público?”, segue-se “Rebellion (Lies)” com o irmão Will Butler, conhecido pelos seus rompantes tempestuosos, a sair desenfreado do palco para subir uma das estruturas laterais empunhando o tambor. Ainda só vamos na segunda música da noite e já nos falta o fôlego.

Outra música que enche sempre o coração é a “No Cars Go”, infelizmente a única da noite para Neon Bible, não que nos estejamos a queixar, até porque só do Funeral ouvimos sete, onde não faltou nem um dos neighborhoods, mas parece-nos que o segundo disco da banda é aquele primo enjeitado que nunca é convidado, e há tanta música boa por lá.

De The Suburbs não faltou o doce regresso à infância da faixa homónima, nem a coragem de “Ready to Start”, que deveria fazer parte do manual de sobrevivência a qualquer crise existencial. “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)” trouxe toda a teatralidade de Régine Chassagne, figura que ainda divide algumas opiniões entre irritante e adorável, nós ficamo-nos pela segunda e aplaudimos que a sua afinação tenha melhorado substancialmente nos últimos anos.

Em “Reflektor” tivemos David Bowie a espiarmos do espaço pelos ecrãs instalados acima do palco e, também do mesmo álbum, “It’s Never Over (Oh Orpheus)” recuperou todo o dramatismo, daquela que é provavelmente a mais bonita e impossível história de amor que Régine Chassagne e Win Butler já nos contaram. Casal na vida real ofereceram-nos também uma dança em “Put Your Money on Me” antes dos sintetizadores transformarem novamente o Campo Pequeno numa enorme pista de dança.

Numa noite de tantas emoções é-nos difícil destacar um momento alto, a não ser talvez aquele que é quase sempre o mais esperado e guardado para o final, que é o hino dos Arcade Fire e que trouxe de volta ao palco a incrível Preservation Hall Jazz Band, que depois do concerto de abertura mal podemos esperar a hora de os ver por cá outra vez. “Wake Up” traduz como nenhuma outra música aquilo que torna os Arcade Fire tão especiais, o dom de cantar com alegria a dor, de colocar esperança até no peito mais desalentado. E não se enganem os que acham que os Arcade Fire se desviaram desta matriz, a verdade é que eles apenas encontraram uma forma diferente de espantar a tristeza, agora fazem-no na pista de dança. Por isso deixem os Arcade Fire dançar e se tiverem coragem juntem-se a eles.


sobre o autor

Vera Brito

Partilha com os teus amigos