O vazio da perda (vão ler esta palavra muitas vezes neste texto) é uma das grandes tragédias da vida. De qualquer tipo de perda, diga-se. E lidar com ele é uma tragédia igual ou, por vezes, maior do que a própria perda, que tanto pode exigir reconstruir uma vida ao juntar-se os estilhaços do trauma ou ir vivendo, navegando à bolina e sem qualquer plano. Alan Sparhawk, antigo membro dos Low, vem combatendo a perda, em Novembro de 2022 (a edição desse ano do Le Guess Who? foi-lhe dedicada, dado que a banda lá iria actuar), de Mimi Parker, a sua companheira de sempre – de vida, de banda, de tudo – utilizando a música como arma e como instrumento de Fé. E partilhou esse combate connosco, envolvendo-nos na obra resultante do seu processo de luto.
Sparhawk não é o único músico destes quadrantes da música popular a musicar o seu luto. Recentemente, Sufjan Stevens pegou nas esparsas recordações da mãe em Carrie & Lowell e Phil Elverum, através do seu (grande) veículo sónico chamado Mount Eerie, compôs dois álbuns particularmente devastadores sobre a dor do luto provocado pela morte da mulher, Geneviève Castrée (ela própria artista e música): A Crow Looked at Me e Now Only.
O primeiro é um relato de uma crueza brutal do impacte das minudências da morte de alguém próximo no quotidiano de quem cá fica, enquanto o segundo já vai para o plano mais abstracto do trauma.
Por seu turno, Alan Sparhawk retomou as lides em 2024 com White Roses, My God, um registo que mais parecia de outro artista, dado o acentuado desvio sónico em relação aos Low. De Duluth, onde com Mimi Parker fez a parte relevante da sua vida (e onde nasceu Bob Dylan), partiu, por força das circunstâncias, para mares emocionais e sonoros desconhecidos, onde a voz e a bateria de Mimi já não estão presentes e a fuga para a frente se tornou numa obrigatoriedade – a alternativa seria cair na catástrofe do vazio. Entretanto, aterrou no Parque da Cidade do Porto para nos dar uma lição.
No nosso trabalho de casa, deslindámos (com contributo de amigos) que os concertos de Sparhawk nesta fase têm sido maioritária e salomonicamente repartidos entre material de White Roses, My God e Alan Sparhawk with Trampled by Turtles, colaboração com Trampled by Turtles editada este ano. Dois álbuns que não podiam ser mais diferentes, retratando os extremos a que se pode chegar no luto.
Não que os Low alguma vez tenham sido limitativos da criatividade de Sparhawk, sobretudo na fase tardia da banda. Das duas vezes que os vimos, em concertos com menos de um ano de intervalo (o segundo na edição de 2019 deste mesmo festival), a banda interpretou o seu cancioneiro de duas formas radicalmente diferentes – a segunda mais pesada do que muitos concertos de metal a que assistimos.
E para ele também não é novidade enfrentar o trauma através da criação artística. Os seus problemas de saúde mental são conhecidos (numa crise de há duas décadas achou-se o Anticristo) e a Fé mórmon e a música (e Mimi Parker e a família que constituíram) e sua envolvente – estúdio e palco – foram uma poderosa muleta espiritual.
Como um vigoroso homem de acção, Sparhawk entra em palco em passo decidido (e ainda nos saca umas fotografias numa máquina descartável), acompanhado pelo filho Cyrus no baixo e por Eric Pollard na bateria e pads. De sweatshirt de Naruto e cabelo comprido completamente desgrenhado, passaria por hippie vendedor de cânhamo e de fruta num recanto da Califórnia; o decoro público no luto a que o mormonismo obriga foi para as urtigas, que o conteúdo vale sempre mais do que a forma.
Contrariamente ao que nos habituou durante décadas nos Low, Alan Sparhawk dispensou por ora a guitarra. Ao invés, a sua palavra passa agora por um sampler e, tão ou mais importante para a trama, por um manipulador de voz Voicetone C1.
Esta segunda geringonça transfigura a voz de Sparhawk para algo próximo do auto-tune. Soando como Tico (ou Teco) e dançando soltamente pelo palco como um xamã, passa a Lil’ Alan (ou Yung Sparhawk, como preferirem) e abre uma nova dimensão, a da fritaria.
Neste momento, estamos a muitas léguas dos Low e suficientemente próximos fisicamente de Sparhawk (em modo mongos das grades) para lhe detectarmos uma dinâmica completamente diferente na voz. Esta descolagem é inédita e a surpresa não ficará por aqui.
Encarnando os Daft Punk (e Nelly Furtado em Maneater), Sparhawk entra em imparável transe em I Made This Beat, cuja letra é praticamente só estas palavras (com uns ad-libs pelo meio). Primeiro estranhou-se e depois entranhou-se, que o público já aceitou este excurso do norte-americano.
Por excurso entenda-se a exploração deste inóspito território. Aí se continuou com Can U Hear e Brother, malhas que poderiam ter sido produzida por Dean Blunt (admiráveis Cyrus e Pollard no acompanhamento rítmico); crípticas de letra e de som, para nós são interpretações de sonhos aparentemente sem sentido e pensamentos absurdos e inexplicáveis que nos passam pela cabeça aquando da perda.
A intensidade da tragédia é também isto, o quase desaparecimento da racionalidade. E a carga inexorável do vazio e consequente solidão. Heaven é uma oração do evangelho de Sparhawk contra o vazio e a vontade que tem de, perdida a voz de Mimi ao seu lado no estúdio, em palco e na vida, um dia voltar a juntar a sua voz à dela no Paraíso.
Com tudo isto, Sparhawk reitera tacitamente que não se deixou dominar pelo relativismo (ou mesmo niilismo) que se seguiu à perda. Continua a criar e vai agora a extremos emocionais e sónicos. Mas vai fazendo um bom luto, como diria Santo Agostinho, isto é, aquele que dá saber e, para quem é crente, nos coloca mais perto de Deus – e, no seu caso, de Mimi.
E eis que se dá uma volta de cento e oitenta graus no concerto. O auto-tune deixou de encobrir a voz de Sparhawk e a guitarra voltou a comandar, que era tempo de avançar para material mais sonicamente familiar, com as emoções à flor da pele.
Como sabemos, quem canta seus males espanta. E Screaming Song é uma das várias catarses do concerto: os devastadores versos “when you flew out the window and into the sunset, I thought I would never stop screaming, I thought I would never stop screaming your name” bastaram para nos deixar a todos de rastos. O vazio, sempre o vazio e o abraço indesejável da solidão.
Sobre isto, Nick Cave atirou certeiramente: o luto é a terrível lembrança da profundidade do amor e, tal como este, é inegociável. E, por vezes, dá para a raiva, como quando, num lamento travestido de invectiva, Sparhawk canta, numa voz trémula mas paradoxalmente poderosa (e a banda num crescendo genial) que, quando Jesus voltar na Segunda Vinda, não haverá ricos nem pobres e a cabronagem (“all you motherfuckers”) pagará. Deus no comando e Sparhawk na guitarra.
Do outro lado do recinto, os Fontaines D.C. (fotos aqui) estavam em velocidade de cruzeiro, com uma intensidade mais baseada no sangue na guelra do que na intensidade emocional. Esta era esmagadora e rainha neste palco.
Havendo extrema dificuldade em escolher um só destaque do concerto, este irá para Poor Man’s Daughter, canção de Retribution Gospel Choir, um projecto paralelo de Sparhawk com Pollard. Um tremendo crescendo dá lugar a nova catarse, a pai Alan e filho Cyrus numa desgarrada instrumental feita expiação de ruído – o braço trémulo da guitarra de Sparhawk foi um instrumento de flagelação.
Para o fim ficou uma canção nova, No More Darkness, ainda sem edição oficial. Sparhawk pede paz e luz para todos (nada dessas charlatanices de “gratiluz”) e em poucos acordes destrói ambiguidades e a escuridão, arrastando a plateia para o coro e para sentidos aplausos.
Passe o chavão, só estamos cá durante uns anos e não vale a pena a húbris da imortalidade, que até uma grande obra pode ser efémera (sobretudo se as gerações seguintes forem compostas por bandos de imbecis que não lhe darão valor). A morte liberta os que foram e impele os que cá ficam a viverem em liberdade até ao golpe final na nossa existência – à guisa de Heidegger, sabemos que o fim vem aí, portanto vivamos.
Sparhawk não esqueceu o passado, mas soltou as amarras – e, por conseguinte, as grilhetas mentais – e fez da dor e sua superação elementos fundamentais da sua obra. E tudo isto resultou num concerto magnífico.
Lutar contra o vazio. Sempre.