Pssst, gajo, cala-te com o James Bond
por Jorge De Almeida em 21 de Julho, 2019

Hey, amigo, obrigado por clicares. Quero que saibas, antes de irmos ao que nos traz aqui, que este é um safe space e estás à vontade para usar expressões como “feminazi”, “SJW”, “politicamente correcto” e, se te sentires mais edgy, cuck. Ninguém te vai dar uma lição de moral e explicar o quão nocivas são estas ideias e como, em última análise, são apenas uma manifestação de masculinidade frágil. Estás entre os teus. Também eu sou um gajo branco que se acha traumatizado pelo peso do seu intelecto. Também eu acho que sei um bocadinho mais que os outros. No meu caso, isso serve para explicar às pessoas que a música que elas ouvem é merda e que elas estão erradas. No teu caso, uh – não sei, é lá contigo. E sim, também eu guardo no coração as aventuras e desventuras desse homem encantador, bem vestido, sotaque britânico, herói de uma saga de várias décadas. Mas já chega de Doctor Who. Falemos do 007.
Nada contra a expiaçãozinha sob a forma de uma powertrip masculina de quando em vez. Quem não sonhou em ser o garanhão da manada quando era jovem, quando a maior forma de validação era o ratio de gajas engatadas? Especialmente, quando nada na nossa vida se assemelhava a isso. Sim, muitos de nós fomos a certa altura o tipo da canção dos Scouting For Girls.
O problema é quando não percebemos que já devíamos estar para lá de termos as nossas fantasias masculinas apaparicadas. Quando a mera sugestão de que a coisa que estava desenhada para nos fazer sentir seguros na nossa masculinidade já não nos vai dar esse fix, nos faz entrar em modo de defesa birrento, aí temos de repensar no que estes filmes fizeram por nós. E, no mínimo, tornaram-nos naquilo que feministas nos acusam de ser: inconscientes do nosso privilégio. Ou na versão inglesa, entitled. Amigo, a cultura pop não te deve um 007 como tu queres – precisas? – que ele seja.
Vou ignorar que a maior parte do ultraje veio só de pessoas que leram apenas os títulos e não perceberam que é só a posição de 007 que vai ser ocupada por uma mulher e que o nosso James continua com a face do nosso Daniel “O-mais-buffed-dos-Bond” Craig. Vou dar de barato que a indignação é pela hipótese real de que doravante não há mais Bond na saga e que até à morte térmica do universo as aventuras imaginadas por Ian Fleming vão ser vividas por uma mulher. E então? Qual é o teu problema?
Já li algures que o cinema não deve nada ao contexto social em que é feito. Que não tem nenhuma obrigação para com os #metoo desta vida, nem para com o feminismo, nem tem que ter uma consciência social directa. Em teoria, isto pode ser verdade. O cinema pode ser feito num vácuo. Se largarmos uma câmara numa aldeia de um povo perdido na Amazónia que nunca teve contacto com o resto do mundo, temos que admitir a possibilidade que é possível que alguém carregue no REC sem querer e filme qualquer coisa parecida com cinema. Mas o 007 nunca não foi se não um reflexo do contexto em que foi feito. Dizer o contrário é não perceber porque é que durante a guerra fria os vilões eram russos com armas nucleares, e porque é que em 2002 o Pierce Brosnan tentou impedir uma guerra entre Coreias. Mais, quando foi pensado pelo autor, o nosso James era um fumador compulsivo. Durante as suas primeiras encarnações no cinema essa faceta manteve-se porque ninguém via grande mal. Fast forward para o presente e os últimos dois Bond fumaram – ora deixem-me contar – apenas um cigarro. É quase como se os filmes reflectissem uma crescente consciencialização dos malefícios do tabaco. As assustadoras estatísticas de que uma em cada três pessoas corre o risco de desenvolver uma forma de cancro também ajudaram.
Hoje, vivemos num admirável mundo novo em que a ideia de masculinidade está a ser redefinida e a representação de grupos historicamente oprimidos e pouco representados motiva a cultura pop. E tu, amigo, devias estar calado.
Ao contrário do que tu possas pensar, esta decisão de ter Lashana Lynch não é para benefício dos teus inimigos da brigada do politicamente correcto. Esta decisão, aprovada por uns executivos de fato que aprovam tudo quanto a máquina de Hollywood debita, é feita a pensar em ti. Desculpa mostrar-te os cordelinhos que trazes presos nos ombros, mas a tua indignação está a ser instrumentalizada para agradar aos deuses do SEO. A teoria não é minha, mas desde que a Keurig, marca de café, retirou patrocínios ao Sean Hannity por causa de uma tirada infeliz sobre pedófilos que o marketing mudou. Houve um boicote à marca que a pôs nas bocas do mundo e, de forma contraproducente, só fez maravilhas pelo seu saldo anual. É o poder da publicidade gratuita. Este episódio foi um acidente, mas já foi recriado de propósito. Basta pensar no anúncio da Nike com Kaepernick e na curta metragem da Gillette. Tudo isto não passa de #wokeness performativa, mas, sem falha, caem sempre os mesmos na armadilha.
A mesma que este texto usa. Quando te disse que te calasses, era um conselho para te explicar que a tua indignação está a ter o efeito contrário ao que tu queres. Mas eu, que também finjo que li merdas do Carl Jung, sei que o arquétipo do gajo que protesta contra uma mulher 007 também inclui o do gajo que brada “liberdade de expressão” à mínima crítica que lhe fazem. A ele e às coisas que ele gosta.
Amigo, eu quero lá saber o que é que a Danjaq, LLC – uma empresa que faz dinheiro por ser detentora de direitos de autor – decide fazer com o 007 para parecer socialmente progressiva. São uma empresa, só respondem ao capital. Mas quando o filme estrear a estratégia da empresa já resultou. O novo filme da saga não vai ser só um tema de conversa, vai ser “o” tema. Porque é apenas humano, tu e eu vamos querer fazer parte dessa conversa. E por 6.75€ podemos todos fazer parte.