Einstein terá escrito numa carta, mais coisa, menos coisa, que, para aqueles que acreditam na Física, a distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma teimosa ilusão. Tudo muito certo com a relatividade do tempo, mas sete anos sem um disco de Iguanas é, para qualquer observador com ouvidos operacionais, demasiado tempo decorrido. Mas ei-los de volta e, como se verá, com bastante para nos dizer.
Sete anos depois de Lua Cheia, os Iguanas regressam então com Mala Feita, terceiro registo da fita do tempo da dupla composta por Leonardo Bindilatti (voz, baixo, batidas, guitarra, sintetizador e pandeireta) e Lourenço Crespo (voz, guitarra e piano), dois titulares indiscutíveis do plantel da Cafetra. Para além desta dupla atacante, desta vez vêm acompanhados de convidados de luxo como Rodrigo Amado (saxofone), Bruna de Moura (violoncelo), Juninho Ibituruna (congas, agogô, caxixis, reco-reco de mola e efeitos) e Leonor Palha (violino).
Prolíficos noutras paragens que não a dos Iguanas, Bindilatti é também parte de Putas Bêbadas (e editou Bindi em 2021) e Crespo, para além de ter obra a solo (disco homónimo lançado em 2020), está também em parte significativa do catálogo da Cafetra, engrandecendo discaços como Disco Tinto, um dos nossos campeões do ano passado. O amadurecimento e evolução criativa de ambos tem agora novos desenvolvimentos neste retorno da banda aos álbuns.
Logo a abrir o álbum em Um Vazio canta-se: “vou sem medo, nada a perder”. Passe o trocadilho, ao fim de minuto e meio de canção estamos diante de tudo menos um vazio: uma sóbria explosão de acordes de guitarra para lá de prazerosos, uma batida para embalar os ombros ao movimento e, regressando à letra, uma mentira bem desavergonhada: “a música que faço é má”. Bem regressados sejam, Iguanas.
Num álbum que (spoiler) tem o amor como tema de fundo, Se é Amor é um mini-tratado sobre um dos maiores imbróglios das relações amorosas, relatado expressamente na letra: “é tão raro um casal na mesma nota”. Sábias palavras acompanhadas com mestria num quase-jangle tipo Real Estate cá do burgo e do “se” passa-se ao “foi”.
Por seu turno, se as personagens de Ultraviolento estão afogadas numa flor de lótus, nós estamos afogados nas texturas de uma malha cimeira de Mala Feita. Assemelhando-se a uma canção de amor errante, os raios de Sol da guitarra de Crespo e as batidas de Bindilatti enchem-na de raios ultra-violeta, num esplendor pop bem na veia de Tears for Fears.
Mais acima falávamos de amor errante. Em Parque Mayer a coisa está mais pura de coração: somos transportados para um camarim que é um quase-boudoir, dane-se o buço louro da Margarida. Com entrada directa no panteão de grandes malhas da Cafetra, é, como tal, um grand jeté sonoro. Instrumentalmente, é uma galeria da química de Bindilatti e Crespo: o primeiro contribui com toda a elegância rítmica e o segundo com arranjos de piano da mesma laia. Amor às três batidas e, de preferência, sem pernas partidas.
Do amor meloso e acústico de Parque Mayer para o sadomasoquismo à moda dos Iguanas de Débora. Se o narrador é o Severin e Débora uma Wanda de uma Vénus das Peles ao jeito do universo Fetra, aquele gosta de levar umas chicotadas e umas malhas na tromba (já cantavam as Pega Monstro que há gajas que gostam de levar na boca) para se sentir vivo e com o coração a palpitar e a canção é, efectivamente, condizente com um coração aos saltos: a melodia de saxofone de Rodrigo Amado e um refrão a dois que é dos melhores que a música nacional ouviu este ano. Pastilha elástica da mais doce e duradoura.
Outro chapadão é a guitarra de Reencontro; Lee Ranaldo e Thurston Moore ficariam com inveja da vertigem que Crespo saca nas cordas. Acabar com a ruptura e promover a reconciliação, sem tretas com outras e com uma obsessão profunda por alguém que nos provoca um calor que pega fogo. Não restem dúvidas: é com canções assim os Iguanas dão um passo de gigante.
De várias canções sobre irreprimível atracção parte-se para a descomunal repulsa retratada em Como Tu. Com uma bílis que muito bem ficaria numa canção de hardcore, nem assim morre o fantástico pendor melódico que os Iguanas ampliam neste álbum – a faca afiada não é só a do narrador, mas também a da melodia dos acordes com que a dupla nos golpeia que nem um exorcismo contra a alma nojenta da letra.
Tal como nos álbuns anteriores, os Iguanas não precisam de muito em matéria de arranjos para a elevação criativa, não obstante a distinta colaboração de Mala Feita. Como Robert Quine (RIP) e Fred Maher no magnífico e sempre actual Basic, Bindilatti e Crespo com pouco fazem muito, deslindando-se texturas de guitarra, piano (ouçam com atenção o início de Multiversos), rítmicas e de voz que revelam uma subtileza que é marca do crescimento do grupo. Bindilatti, cujo trabalho aqui nos recorda Otro ou Atlas Sound, é certeiro e fornece o suporte ideal para a melodia que perpassa por todo o álbum.
A melancolia da chegada ao fim da audição de um disco belíssimo é também a da despedida de Tchau Luna. A sombra do interesse amoroso que levita o coração e alma; levitação esta ajudada pelas palavras da letra, pela pulsação das batidas de Bindilatti, pela guitarra de Crespo a fazer lembrar o melhor dos Felt e pela singeleza dos arranjos de Bruna de Moura no violoncelo, que conseguem fugir do lugar-comum da angústia do retrato musical da despedida e fecham com magnificência o álbum. Toda uma conjugação de texturas sónicas que muito bem ilustram as agruras do desejo que foi ao ar.
Como todos os registos recentes da Cafetra a que temos dado uma vista de ouvidos, também Mala Feita representa uma evolução artística e é, para este escriba, o melhor álbum de Iguanas. Note-se que também neste braço da Fetra a qualidade começa a ser longeva e relembre-se, como contexto, que boa parte dos ídolos da torcida dos movimentos da música popular dos últimos cinquenta anos deu o berro criativamente ao fim de poucos álbuns; boa parte ao terceiro disco já não tinha nada para dizer, ao contrário dos Iguanas, que têm aqui muito para dizer e dão ao éter um disco aparentemente simples mas progressivamente mais denso à medida que se avança na audição.
Vai para década e meia que Iguanas e demais membros do pelotão da Cafetra fazem parte da nossa melomania e vai para década e meia que é um prazer assistir ao seu crescimento artístico. No caso da dupla com nome de réptil, das ideias abstractas e das batidas à J Dilla de Doce (em especial de Amo o Teu Rabo, ou não fosse Rabu Mazda uma das encarnações de Bindilatti) passaram para a fase propensa à dança de Lua Cheia e desembocaram na explosão (à sua maneira) de Mala Feita.
Mala Feita é um dos grandes discos nacionais de 2025, ponto final. Ao contrário das malas de Willy Loman ou das malas bem batidas de Sal Paradise e companhia, a mala dos Iguanas vai-se enchendo de carga que vale a pena trazer connosco.
Uma mala que é um coração bem cheio.

