amoque ( a·mo·que )  
nome masculino 
1. Acesso de loucura furiosa e homicida. 
2. Reacção súbita de mau humor ou irritabilidade. 
Origem: francês amok, do inglês amuck, do português amouco, do malaio amoq, arremetida furiosa, indivíduo possuído de fúria.

Há coisa de três anos e tal, após um (fantástico) concerto de Lightning Bolt em Lisboa, Miguel Abras ofereceu-nos um autocolante no qual constavam um bicho fofinho e quatro letras: “H-E-T-T-A”. O mistério perdurou durante uns dias até que, após pesquisa, fomos parar ao perfil de Bandcamp de uns tais Hetta, picámos Headlights, EP gravado ainda em 2020 e produzido por Abras e Leonardo Bindilatti, e levámos com um soco sonoro nas ventas chamado Prizefighter. Estava ali qualquer coisa.

Hetta, de seu nome completo Hetta do Montijo, são uma das grandes bandas que apareceu por cá nos últimos anos. Compostos por Alex Domingos (voz), João Pires (guitarra), Simão Simões (baixo) e João Portalegre (bateria), eis que, depois de algumas edições a conta-gotas, a banda da Margem Sul finalmente nos dá este murro de longa duração de colocar no gira-discos.

Como muito boa banda dedicada aos três acordes ou ao tempo rítmico alucinante, uma das dificuldades que os Hetta poderiam ter ao gravarem os seus registos de estúdio é o de capturarem competentemente a intensidade do grupo ao vivo, que é muito mais do que mero volume, é um apelo desgarrado contra o marasmo e pela acção. É, também, todo um retrato de um amok sónico, de uma obsessão vertiginosa – como Stefan Zweig retratou em livro e os Hetta se propuseram fazer agora em disco.

Quem já os viu ao vivo (se não os viram, façam-no quanto antes), testemunhou todo um quadro idiossincrático de inconformismo performativo. Alex deambula freneticamente pelo palco emulando um xenomorph de microfone, caindo sobre a plateia como se estes fossem os tripulantes da Nostromo e os Joões e Simão asseguram que o espancamento também nos chega pelo PA. O “No Pain, No Gain” não é só treta de ginásio. Feito o enquadramento, prossiga-se, então, para a prova dos nove.

O ruído inicial de Fire the Choir (e do disco) é um digníssimo herdeiro de I’ve Heard It Before dos Black Flag; nem um minuto vai da neurose inicial até uma quebra demolidora que leva a uma inversão de marcha com um riff descomunal e uma marcialidade inexorável. Ainda a procissão vai no adro e já temos disco.

A fotografia de capa, da autoria de António Júlio Duarte, não poderia ilustrar melhor a claustrofobia e o encarceramento do que nos anda a rodear e do grito de libertação necessário, com uma cisterna de sarcasmo e fúria como aditivos ao combustível. Com efeito, ouvimos canções como Twin Scissors ou Plainclothes Man e temos Unwound em modo super guerreiro, Dillinger Escape Plan da Margem Sul e uns Hella com pé a fundo no pedal – todas elas peritas em retratar o absurdo e a alienação contemporâneas, cada uma de sua maneira. Toda a raiva e toda a urgência para uma banda sonora de um mundo em que a palavra “certeza” deixou de existir e no qual as aberrações artísticas e políticas distorcem toda a lógica. 

Pelo que se vai ouvindo, Acetate é, pela sua inacreditável agressividade tipo motor-a-jacto-pista-fora-para-descolagem e tal como os dois primeiros álbuns dos SS Decontrol (RIP Al Barile), muito mais do que um disco de punk misturado com noise. É, isso sim, um disco de avant-garde, sem pedantismos e com pedalada para dar e vender: nos pouco mais de três minutos e meio combinados que duram Career Blonde e Pontaria, a banda escreve um tratado de condensação de desvario rítmico (Simão Simões e João Portalegre rebentam com o metrónomo) e de redefinição da explosão do post-hardcore.

Memorável sequência, a de The Gold Standard In Dumpster Diving e Caught Again. A primeira é o math rock depois de levar com o rolo compressor dos Hetta, muito graças aos acordes que João Pires saca na guitarra e a segunda uma incrível montra da versatilidade do quarteto do Montijo: se o Doutor Emmett Brown dizia que não precisava de estradas para o seu DeLorean, os Hetta dispensam as convenções dos outros e edificam as suas próprias, mesmo que à marretada. Um disco que é, efectivamente, uma flagelação e um grito de reunião para o amoque geral e que, não sendo um trabalho explicitamente político, não deixa de passar uma mensagem de reacção contra a atitude de orelha murcha que tantos adeptos tem entre nós.

E amocados vamos pelo éter, guiados pelos Hetta. Conseguem reunir uma série de gente nos acordes que nos vertem para os ouvidos sem serem formulaicos, o que é notável; para tal, ouça-se as chicotadas de Wire Lashes, às quais se segue Buckteeth, canção mais “””convencional””” mas que também não deixa de impelir o ouvinte a atirar-se contra a parede.

A busca pela desconstrução finda com Triple Tracy, 13.ª e última canção de Acetate. O surrealismo grotesco da letra é o azar de alguém e a nossa sorte, que somos brindados uma última vez pelo impulso criativo dos montijenses, cabalmente imortalizado por André Isidro nas captações e por Jack Shirley na mistura, almejando mitigar quaisquer perdas de intensidade sónica no registo de estúdio em relação ao que se costuma passar em palco. Com “here’s the truth, send me off” guinchados em forma de sussurro (muito gostam eles de subverter as coisas), acaba o disco como se fôssemos flutuar Tejo fora rumo ao mar.

Não obstante as várias escolas que se ouvem neste álbum, os Hetta não são tirados a papel químico de ninguém e, como no punk a disseminação sónica de ideias anda à velocidade da luz, já têm discípulos: numa veia mais screamo, os Reia Cibele já lhes seguem as pisadas na construção da destruição, salvo seja.

Dizem que Portugal não tem armas de destruição maciça, mas ficamos com dúvidas ao fim da audição de Acetate. A intensidade de um actuação da banda consegue ficar aqui vertida com certa fidelidade e, finda a experiência, ficamos que nem as ruínas do Forte de Douaumont depois de Verdun ou afogados como o narrador de Amok ainda que com um par de certezas: a de que este é o disco nacional do ano e que a vontade de ouvir e ver o que para aí virá da parte dos Hetta é muita.

Eu amoco, tu amocas, os Hetta amocam.


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